23 abril, 2014

Noé (Noah, EUA, 2014).


Interpretação artística de uma passagem bíblica, Noé certamente é o projeto mais arriscado do cineasta norte-americano Darren Aronofsky (Réquiem para um Sonho), nome badaladíssimo no cenário de filmes independentes, que acabou lançado ao dito "estrelato" após seus dois últimos êxitos de crítica e bilheteria, o drama de baixo orçamento O Lutador, que acabou retomando a carreira do problemático Mickey Rourke (o mesmo venceu o Globo de Ouro e o Oscar pelo papel título do filme) e o emblemático Cisne Negro, talvez um dos filmes mais queridos de 2010, que deu a Aronofsky sua primeira indicação ao Oscar e coroou o desempenho de Natalie Portman (Thor: O Mundo Sombrio) com sua primeira estatueta de melhor atriz.

Todavia, apesar de despertar bastante atenção midiática, o cineasta até então abraçara apenas projetos de baixo/médio orçamento, calcados quase que totalmente no trabalho de direção e atuação, sem o apoio de efeitos visuais (à exceção de Fonte da Vida) ou de cenas de contorno épico. A bem verdade, mesmo que seu cinema não possa ser classificado como intelectual ou complexo/complicado, até então seus filmes não haviam sofrido processo de alteração ou adequação as plateias, tendo estas que comprar ou não as ideias apresentadas, fossem estas mais indigestas (Pi, Réquiem para um Sonho) ou nem tanto (O Lutador, Cisne Negro). Eis que, após a consagração inequívoca obtida com seu último filme e após abandonar o projeto de filmar o novo longa do "herói" dos quadrinhos Wolverine - projeto este que acabou nas mãos de James Mangold e tornou-se Wolverine: Imortal -,  Aronofsky investe numa ideia que o acompanhava desde tempos imemoriais: uma versão cinematográfica, autoral e, por que não, fantástica de uma das personalidades mais conhecidas do mundo ocidental (seja você religioso ou não), Noé.

Estranhamento a parte, é fato que, apesar de alguns pequenos detalhes - logo mais estes serão apontados -, sua visão particular do cânone bíblico saiu melhor que a encomenda, ultrapassando a pecha de filme bíblico e até mesmo desconstruindo (em parte) o que num primeiro olhar poderia ser interpretado como apenas uma fantasia. É justamente no campo da interpretação, através do auxílio de metáforas (textuais e estéticas) e da materialização de alguns dilemas existenciais tão próximos ao homem de hoje quanto daquele vivo há tempos imemoriais (supõe-se) que a trama de extinção da espécie humana, do desencontro entre criatura(s) e criador, da busca por amor e afeição em confronto ao ódio e ao repúdio, que a obra cresce. Pois uma coisa é certa, todo o carnaval e parafernália visual do filme é posto com o intuito de contextualizar ideias que até hoje atormentam a humanidade, questionamentos básicos que ganham desdobramentos altamente complexos, que perpassam desde "de onde viemos" e "para onde vamos" até "o que nos faz humanos" e "o que seria ser humano".

Todavia, apesar de estabelecer paralelos entre divindade e homem, entre o ontem e o hoje, o Noé de Aronofsky acaba caindo em algumas armadilhas narrativas, certamente em favor do espetáculo. O discurso reducionista (quando "conveniente") dado a alguns personagens - como o Tubal-cain interpretado por Ray Winstone (A Invenção de Hugo Cabret) - prejudicam a densidade do debate, enquanto outros não possuem um desenvolvimento mais aprofundado (como os filhos de Noé, Ham e Shem, vividos por Logan Lerman e Douglas Booth, respectivamente). Em contrapartida, Russel Crowe (Os Miseráveis) está um monstro e muito bem acompanhado pela sempre competente Jennifer Connely (Cidade das Sombras). Anthony Hopkins (O Silêncio dos Inocentes) completa o elenco principal mas, apesar de ter seus momentos, sua contribuição não faz assim tanta diferença (do ponto de vista narrativo) à construção da história. Com isso, não digo que o descarte de seu Matusalém não prejudicaria a obra, mas certamente sua presença não tem uma importância estratégica.

Saindo do escopo de conteúdo, o que dizer do filme esteticamente? Mesmo que os efeitos visuais não funcionem à perfeição em muitos momentos - o fato do filme ter sido convertido (de forma apressada) para o 3D certamente teve influência no resultado final apresentado -, a construção e o desenho de produção do filme é interessante, mas dentre todos da equipe técnica talvez o que mais se destaque seja Matthew Libatique (Segredos de Sangue), cujo trabalho de fotografia une de forma orgânica os dois mundos abraçados pela obra: o entretenimento mainstream e o filme de ideias. Mesmo que em alguns momentos a opção por uma linguagem, digamos, convencional acabe causando estranhamento, após vislumbramos sequências como a que apresenta a criação do mundo e da humanidade até os dias de hoje, em frames acelerados, como também a germinação de uma semente que dá origem a todo um novo ecossistema (ambas as sequências apresentadas com a estética preferida por Libatique e Aronofsky, presente em todos os filmes assinados pela dupla até então).

Bonito e minimamente provocador (certamente pelos motivos que você não esperava), este Noé concebido por Darren Aronofsky - homem nascido em berço judaico, mas que hoje se posta como ateu - pode não seguir ao pé da letra os comandos bíblicos (cujo referencial matriz é bem resumido e pouco detalhado, por sinal), mas acerta ao adaptar as características dispostas no texto original (há controvérsias quanto a esta originalidade, mas esta discussão não caberia aqui) tanto ao público de hoje, quanto às angústias do homem contemporâneo. Muitos podem classificar esta obra como fantasia delirante ou baboseira revisionista (seja lá o que isso queira dizer), mas é inegável que, assim como por trás de criaturas disformes e amarguradas (um dos maiores acertos do filme) encontram-se entidades primordiais (ou anjos) presos à conjuntura terrena, através de um caleidoscópio de imagens é possível perceber e abstrair significados e significantes distintos, mas cuja ideia central remonta àqueles questionamentos metafísicos já comentados mais acima e que seguem encucando a humanidade desde seu auto-descobrimento como ser pensante.  

Noé pode até não alcançar a perfeição pretendida e suas lacunas diminuírem-no como obra artístico-cinematográfica, mas é inegável seu impacto como semeador de reflexões e só por isso já vale a pena debruçar-se sobre a terra antiga, habitada por homens e entidades, quando as dores a aflição pela proximidade do cometimento do pecado original ainda eram sentidos e vividos de forma pura e verdadeiro por aqueles. Terra-Média ou Velho Testamento, pouco importa a referência buscada, o fato é que Noé se mostra como um filme interessante, seja como entretenimento, seja como catalisador de ideias. Entretanto, apesar de ter saído contente com o que vi, ainda prefiro que Darren Aronofsky continue a trabalhar com um cinema menos arrebatador visualmente e mais libertador no que se refere as ideias.

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