Uma coisa é certa, houve muita má vontade por parte do público e da crítica (especialmente norte-americana) na recepção desta refilmagem do cult RoboCop - O Policial do Futuro, de 1987. É claro que este projeto nunca seria unânime, até por ter como base um filme muito querido, especialmente pela gerações oitentista. Todavia, protegido ou não, o certo é que toda nova produção, seja ela refilmagem ou não, deve ser vista e analisada de acordo com seus próprios fundamentos, com a proposta vendida, com o discurso que pretende apresentar, sendo a comparação direta com a obra original apenas acessória, especialmente no caso deste RoboCop, cujo objetivo sempre foi o de se apropriar do conceito apresentado pelo filme de Paul Verhoeven e "reconstruí-lo" de forma substancialmente distinta, mesmo que alguns ecos do longa anterior possam ou sejam mantidos.
Dirigido pelo brasileiro José Padilha (Tropa de Elite) e estrelado pelo promissor Joel Kinnaman (série The Killing), RoboCop é um filme distinto da obra de 1987 não por ir de encontro a este, mas sim pelo viés abraçado. Enquanto o longa oitentista abusava da violência ao mesmo tempo em que exercitava uma forte crítica ao corporativista fascista pungente na era Reagan, além de apresentar uma visão de futuro para lá de negativa pelo ponto de vista de Verhoeven, esta refilmagem adota uma visão mais política, onde questiona a crescente automatização dos aparatos bélicos e militares (entra na equação os drones não tripulados) e o cada vez mais graúdo mercado de pronto atendimento de armas e tecnologia de segurança e, como não, militar.
Outro diferencial que pontua esta nova versão se dá no âmbito filosófico. Há uma inversão na análise do binômio máquina x homem. Enquanto o filme original apresentava um homem-robotizado que pouco a pouco ia ganhando consciência, recobrando sua humanidade e se desprendendo, metafórica e materialmente, da programação a qual foi condicionado, a obra de Padilha apresenta o produto RoboCop com total consciência do que é e do que aconteceu consigo, porém isto se mostra um obstáculo para concretizar a efetividade do "produto" policial como uma máquina policial, vindo então a ciência (sob a coordenação do corporativismo) para desumanizá-lo aos poucos, tornando-o assim uma máquina por inteiro (ou quase, como o filme desenvolverá a posteriori).
As discussões de cunho filosófico ganham bastante espaço neste RoboCop, especialmente aquelas que tratam de consciência e da questão do livre-arbítrio. É interessante a relação construída entre os personagens de Kinnaman (Murphy/RoboCop) e de Gary Oldman (doutor Dennet Norton, responsável pela engenharia que cria o RoboCop), cujos debates (e ações) perpassam por diversos conceitos abraçados pela filosofia - de acordo com Padilha, sua busca se deu pela dita filosofia da mente/consciência -, além de levantar questões éticas para lá de óbvias. Certamente um dos pontos mais interessantes inseridos nesta nova versão do filme. Uma pena que, dentre tantos temas (além de sequências de ação e desenvolvimento de personagens), este acabe sendo apresentado de forma muito rápida.
A crítica a estrutura midiática hodierna é uma das pautas do filme de José Padilha, que em parte recicla a ideia apresentada em seu segundo Tropa de Elite, ao apresentar um jornalista (Samuel L. Jackson, impagável) manipulador, dotado de agenda própria e que utiliza seu poder como formador de opinião para ir de encontro a preceitos básicos relacionados aos direitos humanos, exercendo o papel de falso crítico da realidade, além de possuidor da solução para qualquer problema - no caso do filme, para a plena extinção da violência urbana nos Estados Unidos -. Inspirado em personalidades de canais altamente conservadores como Fox News e em algumas celebridades tupiniquins, o personagem, apesar de aparecer pouco, é posto como o fio condutor tanto da trama do filme quanto da crítica política estabelecida pelo mesmo, que ganha no aparato midiático seu maior aliado e inimigo. A contradição do pensamento político norte-americano é também um tema levantado pelo filme, que ganha destaque através do porta-voz direitista interpretado por Jackson.
No final das contas o elenco do filme é um dos grandes trunfos da obra, que apresenta algumas promessas (Joel Kinnaman, Abbie Cornish, Michael T. Williams) ao lado de veteranos em grande forma (Gary Oldman, Michael Keaton, Samuel L. Jackson) para ajudar a concretizar esta nova visão de RoboCop. Kinnaman convence tanto como Alex Murphy (detetive de polícia que sofre um atentado violento por conta de uma investigação que pode desbaratar um esquema de corrupção no Departamento de Polícia de Detroit e acaba quase morrendo), quanto como RoboCop, mostrando que tem um bom timming tanto para cenas de cunho dramático, quanto àquelas mais leves. Em nenhum momento o ator tenta emular os trejeitos de Peter Weller - o RoboCop original -, especialmente quando Alex Murphy, o que é uma ótima decisão criativa, pois assim fica mais do que claro que, apesar dos nomes, ambos são personagens distintos. Cornish (esposa de Murphy) e Williams (parceiro de Murphy) têm pouco tempo em cena para desenvolver seus respectivos personagens, além de parecerem desconfortáveis em alguns momentos (especialmente Cornish), o que não chega a atrapalhar, mas tira um pouco do brilho de suas interpretações. Já o bloco de veteranos certamente é o destaque do filme, tendo cada um dos três atores papéis importantes à trama, relativamente bem desenvolvidos e compostos por ótimas performances. À exceção de Jackson que apresenta um personagem mais caricato (o que é um acerto), tanto Oldman quanto Keaton constroem personagens simpáticos e particulares, todavia bastante dúbios, o que reforça o caráter "provocador" do filme.
O aspecto estético do filme é interessante, mas não chama muita atenção. Seu desenho de produção (a cargo de Martin Whist, de O Segredo da Cabana) tenta alinhar a Detroit 2028 o mais próximo possível ao nosso olhar de hoje, mas isso acaba deixando o visual um tanto sem graça. Acostumada a trabalhar em produções de ficção-científica, April Ferry (Elysium) também opta pelo desenvolvimento mais "pé no chão" dos figurinos do filme, optando por uniformizar o vestuário, o que dá verossimilhança a obra, mas também acaba por não estabelecer uma identidade mais forte, especialmente no figurino de peças-chave, como o próprio RoboCop. Em compensação a fotografia do brasileiro Lula Carvalho (Paraísos Artificiais) - que mistura bem o estilo "documental" dos Tropas de Elite com uma estética mais próxima aos dos video-games - e os efeitos visuais encontram-se excelentes. Já Pedro Bromfman, apesar de construir uma trilha bacana, sofre duplamente pela inevitável comparação à excepcional trilha do filme original, composta por Basil Poledouris, e pela falta de um tema marcante, já que apesar de ajudar na construção do tom do filme, sua trilha não é marcante.
Escrito por Joshua Zetumer, RoboCop possui três atos bem definidos, mas não equiparados no que se refere à qualidade narrativa. Sua primeira hora introduz bem os elementos definidores da trama, além de sedimentar a base filosófica pincelada durante o restante do filme. Em seguida, temos uma resolução um tanto apressada, especialmente no momento que registra a retomada da humanidade por Alex Murphy, cujo resultado é a "desculpa" perfeita para que o mesmo resolva o caso do atentado a sua vida. O desenvolvimento daí em diante tropeça um pouco, que culmina no desfecho um tanto irregular do filme, que ganha em tensão, mas perde um tanto em coerência temática com relação ao que vinha sendo apresentado até então (especialmente quanto ao comportamento do personagem de Michael Keaton, que passa de dúbio a "assassino"). É mais do que sabido que Padilha passou por alguns "perrengues" durante a produção do filme, o que pode ter contribuído para este desnivelamento conceitual. Todavia, com ou sem problemas, é importante frisar que há muito do estilo do diretor - em conteúdo e em estética -, que consegue imprimir sua marca de forma impactante, apesar das possíveis concessões.
Possuidor de algumas sequências de alto impacto - o prólogo ambientado em Teerã, a cena que apresenta um deficiente físico voltando a tocar violão através da ajuda de próteses robóticas e aquela que registra a primeira vez que Murphy vê o que restou do seu corpo - e uma trama interessante conjugada a discussões de caráter urgente, RoboCop versão 2014 certamente não é um marco cinematográfico como o filme de 1987, mas também não busca sê-lo, mas é sim uma nova e eficiente roupagem para um personagem e conceitos que se sobressaem da forma ou ideia defendida no filme original, sendo este trabalho assinado por José Padilha não um substituto ou uma cópia, mas sim um complemento, que tem sim alguns problemas, mas cujo resultado final é bem mais positivo que negativo. Pobre sociedade norte-americana que não consegue conceber a possibilidade de ser também alvo de críticas.
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