20 janeiro, 2013

As Aventuras de Pi (Life of Pi, EUA/ING/TAI, 2012).


"No final a vida se torna um ato de desapego, mas o que mais magoa é não reservar um momento para se despedir" (Trecho de uma fala de Pi).
Sumido das premiações e aplausos desde o badalado (merecidamente) O Segredo de Brokeback Mountain - seus últimos dois filmes, Desejo e Perigo (2007) e Aconteceu em Woodstock (2009), não foram unanimidade -, Ang Lee decidiu apostar como seu novo projeto numa história no mínimo inusitada, onde o visual predominaria ao textual, mas com força tamanha que o tornasse mais profundo que qualquer palavra. Sem contar com grandes nomes no elenco - minto, pois Gerard Depardieu (Cyrano de Bergerac) faz uma ponta - e marcando a estreia do diretor na captação em 3D, As Aventuras de Pi (para mim o correto seria Aventura) é, como a frase disposta no poster afirma, uma jornada de vida, entrelaçada por um estudo acerca dos limites físicos e psíquicos passados por um ser humano, que enfrenta a fúria do desconhecido ao mesmo tempo em que enxerga e sente uma realidade que sempre esteve ali, mas que nunca fora notada, reconhecida, vivida. Certamente havia uma certa descrença quanto a se ao potencial artístico e comercial desta nova obra assinada por Lee. Como qualquer obra artística, a recepção subjetiva varia, mas quanto ao âmbito comercial, é inegável o sucesso do filme.

O primeiro elemento que salta aos olhos é, indubitavelmente, o visual do filme. Lee e do diretor de fotografia Claudio Miranda (Oblivion, Tron, o Legado) constroem imageticamente, desde as primeiras tomadas no Canadá, perpassando pela Índia e, sem seguida, nas sequências em alto-mar, um misto de sonho e realidade, denotando assim um ambiente verossímil, mas levado ao limite entre o factível e o fantástico. O trabalho da dupla, aliado ao excepcional desempenho da empresa de efeitos visuais Rhythm and Hues, dá vazão a uma estética belíssima, que abraça a responsabilidade de ser o fio condutor da mensagem da obra, que não se reduz a sobrevivência (Pi é vítima de um naufrágio), pois abrange reflexões caras a própria existência da vida. Compararia a pretensão filosófico-existencial deste filme com a de A Árvore da Vida, de Terrence Mallick, mas sem tanta abstração cosmológica, por assim dizer.

Até certo ponto, a narrativa do filme pode ser tida como bastante simples, possuindo este uma montagem linear e um número pequeno de personagens de relevância à trama. É notório que o foco do roteiro de David Magee (Em Busca da Terra do Nunca) - baseado no romance de Yann Martel - está no "relacionamento" entre Pi e Richard Parker (o tigre de bengala que se torna companheiro do garoto) e entre estes e a natureza ao seu redor. Com um cunho reflexivo particular, As Aventuras de Pi não esconde a pretensão de provocar discussões acerca de elementos metafísicos, exógenos ao ser humano, mas ao mesmo tempo intrínsecos ao mesmo. Descrevendo assim a impressão que se dá é a de que o filme é apoiado em grande complexidade temática, quando é o inverso que ocorre pois, apesar da temática distinta, o entendimento quanto a(s) mensagem(ns) carregadas pelo filme é de compreensão imediata, já que as provocações, induções e contradições apresentadas através da figura de Pi e de seu relacionamento - forçado ou não - com os eventos pré e pós naufrágio (desde antes do trágico acidente são apresentados detalhes complexos acerca da formação da personalidade do menino Pi).

A bem verdade, o grau de abstração necessário ao entendimento do filme é minimo, pois este pede apenas que o receptor emerja na ideia lançada (reside aí uma das forças do visual arrebatador e, possivelmente, da técnica narrativa 3D) e que a referencie com sua própria concepção de existência, sua experiência de vida. Simples, mas nunca simplório, o grande barato de As Aventuras de Pi é que, apesar de sua jornada culminar em um ponto determinado, os passos que levam ao seu desfecho são de ambivalência ímpar, alimentando então significados e significantes distintos a cada espectador, que certamente referenciará cada um dos eventos apresentados pelo filme como provações (ou provocações) de cunho religioso, como debate existencial-filosófico ou até mesmo como uma derivação da jornada do herói. Abstrair a mensagem final do filme é sim importante, mas o objetivo primeiro de Lee, Magee e Martel parece ser o poder simbólico de descobrimento através da jornada.

Em conversa com o amigo Leonardo Carnelos, do blog parceiro Art Perceptions, foi estabelecido como ponto enigmático do filme a ilha que encontra Pi e Richard Parker e lhes oferece cura (água, comida, descanso), mas que cobra por isso. Assim como outras manifestações da natureza que podem (e devem) despertar interpretações várias acerca de sua função/objetivo/razão de surgimento, esta ilha parece representar o ápice da tortura e, ao mesmo tempo, da leveza de espírito refletida por Pi, visto que este ambiente dualmente acolhedor e inóspito casou perfeitamente com as angústias e devaneios sentidos e demonstrados pelo personagem, que encontrava-se em um momento de pura contradição, onde não sabia se encarava sua realidade como uma provação de cunho divino (partindo então para o caminho da salvação) ou se tudo não passava de uma série de acontecimentos trágicos, porém sem sentido lógico, metafísico ou não. A ilha é rito de passagem, marco de reencontro do personagem consigo mesmo, onde este, após uma série de eventos, encontra equilíbrio. É necessário abstração e é isto que, aos meus olhos, o agora adulto Pi consegue.

Prato cheio para debates entre as mais diversas correntes de pensamento - a vida, em essência, supera a discussão acerca da crença no divino ou no apego ao materialismo -, As Aventuras de Pi é um filme possuidor de uma mensagem clara e bonita, carecendo talvez de menos simbolismo e mais questionamentos. Seu aparato estético é brilhante, lembrando um casamento entre duas obras distintas e ao mesmo tempo muito próximas do cineasta James Cameron, O Segredo do Abismo e Avatar, mas carregando uma cara própria, sem brechas para acusações de plágio ou algo do gênero (ao contrário da obra original de Martel, que passou por problemas por conta da semelhança entre sua trama e a de uma obra do brasileiro Moacyr Scliar). Há, como bem alertou o amigo Carnelos, ecos de Peixe Grande e Suas Maravilhosas Histórias, de Tim Burton, no filme, devido ao tom fabular e de desconfiança quanto a realidade da história narrada em ambas as obras. Mas, acima de tudo, há muita poesia e reflexão no filme, podendo estas tanto serem compreendidas como lições de auto-ajuda ou catequização espiritual, quanto como uma mistura de apontamentos e manifestações humanas, em busca de uma resposta além do homem, mas que sempre tem por início e fim um espelho diante de si mesmo.

Obs.: Só eu achei que o ator Rafe Spall (Anônimo) está a cara do jovem Richard Dreyfuss, à época de Tubarão ou Contatos Imediatos do Terceiro Grau?

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