16 novembro, 2012

Cidade das Sombras (Dark City, EUA, 1998).


"Eles construíram a cidade para ver como nós funcionamos. Ontem a noite um de nós escapou". (Livre tradução da chamada do poster promocional do filme).
Há quem compare este Cidade das Sombras com Matrix. Realmente há similaridades, especialmente no âmbito conceitual e metafórico, entretanto talvez o que distingua uma obra da outra seja o estilo de abordagem, visto que em Cidade das Sombras podemos encontrar gêneros distintos dialogando em favor da narrativa, mas dentre estes gêneros a ação  é praticamente nulo, ou simplesmente pouco importante à intenção do longa (ao contrário de Matrix). Pouco visto quando lançado, mas hoje caracterizado por muitos como cult, o filme dirigido por Alex Proyas (O Corvo) é uma obra ímpar, rica em referências, instigante e dona de um andamento particular, apresentando uma trama central no mínimo surreal, mas que metaforiza elementos diversos da subjetividade humana, especialmente aqueles conectados a conceitos de identidade. Uma obra de entretenimento que exige um pouco mais de paciência e atenção do receptor, não é exagero categorizá-la como o Inception (A Origem, de Christopher Nolan) dos anos 1990.

Duas características distintas são de suma importância para o amarramento do longa. A parte conceitual, que compõe a trama em si e os elementos metafóricos da mesma, e a estética da obra, elemento este de suma importância a própria mensagem inserida no enredo, que sustenta o discurso acerca da perda e consequente busca de identidade proposta pelo filme, representada visualmente pelo contraste entre luz e escuridão e pela arquitetura visual indefinida, mas de óbvia inspiração gótica. Estes dois elementos narrativos - "texto" e visual - caminham de mãos dados em Cidade das Sombras, sendo impossível dissociá-los sem danos a obra.

É válido frisar que, apesar de não ser um filme ininteligível ou excessivamente cerebral, Cidade das Sombras não é um filme de fácil assimilação - mesmo com o velho recurso da narração em off introdutória e, muitas vezes, dispensável -, pois além de apresentar uma ambientação distinta da nossa realidade, traz consigo temas de forte cunho filosófico, especialmente da metafísica. Ao apresentar uma realidade confusa onde a humanidade aparece confinada como ratos num labirinto imenso (mesmo sem ter noção disso), sendo estudada por seres alienígenas (intitulados como Estranhos), Proyas e os co-roteiristas Lem Dobbs (A Toda Prova) e David S. Goyer (Batman Begins) propõem uma discussão acerca da delicadeza da percepção da realidade pelo homem (provavelmente inspirados em distúrbios mentais de identidade, além da descaracterização do homem moderno) ao mesmo tempo em que inserem elementos de deslocamento de tempo e espaço no universo apresentado (ficção-científica na veia), promovendo um misto de estudo psico-filosófico do homem e fantasia distópica. Muito mais para refletir do que para compreender (ou até mesmo perceber) todos os detalhes jogados à trama, Cidade das Sombras resume-se como uma viagem fascinante por um mundo distinto, mas estranhamente próximo ao nosso.

É certo que Alex Proyas é um sujeito bastante criativo, tanto é que seu trabalho geralmente é auto-complementado por sua pegada estética apurada, tendo este Cidade das Sombras atingido talvez o máximo de inspiração (e, por que não, transpiração) dele e de sua equipe. O visual do filme tem influências várias, sendo facilmente identificadas as que remontam ao expressionismo alemão (Metrópolis, de  Fritz Lang, Nosferatu, de F. W. Murnau etc.) e ao noir futurista e distópico Blade Runner, o Caçador de Androides, de Ridley Scott, por exemplo. Não sei quanto disto veio da cabeça de Proyas, Dobbs e Goyer, mas certamente houve clara influência da equipe técnica do filme, especialmente do cinematógrafo Darius Wolski (Prometheus), do design de produção Patrick Tatopoulos (O Vingador do Futuro, versão 2012), dos diretores de arte Richard Hobbs (Navio Fantasma) e Michelle McGahey (Matrix) e da figurinista Liz Keogh (Eu, Robô), sagrando-se estes responsáveis por pelo menos metade do sucesso e da qualidade do filme.

Finalizando o aspecto visual, temos a questão do elenco do filme e quanto a este encontramos alguns problemas. Mesmo que nenhum personagem ou intérprete prejudique o andamento ou a eficácia da obra, é certo que alguns elementos não saíram tão bem quanto outros neste sentido. Apesar de enxergar competência em Rufus Sewell (Abraham Lincoln: Caçador de Vampiros), falta carisma ao ator, o que prejudica um pouco o quesito empatia ao espectador, ponto importantíssimo quando o personagem principal carrega narrativamente a função de nos servir de olhos aos eventos apresentados pela trama. Sewell, mesmo não comprometendo no quesito atuação, não desperta interesse, pois mostra-se um tanto quanto apático em quase todo o filme, sendo esta sua escalação para o papel má conduzida. Outro que não cai tão bem ao filme, mas por quesitos diferentes, é Kiefer Sutherland (Melancolia), que ao meu ver exagera na composição de sua personagem, dando um toque caricatural e cartunesco que desloca um pouco a ideia geral da obra, mesmo que esta tenha em sua essência toques de surrealismo e uma certa veia de histórias em quadrinhos. Porém, estes pequenos detalhes não chegam a estragar a potencialidade das personagens, muito menos a interação para com a trama e o universo tratados pelo filme. Contando ainda com as presenças de William Hurt (A Vila), Jennifer Connelly - no auge da beleza -, Ian Richardson (Do Inferno) e Richard O' Brien (The Rocky Horror Picture Show) - estes dois últimos "assustadores" -, Cidade das Sombras acerta ao investir em bons atores (à época, não necessariamente badalados) para personificar os tipos curiosos abraçados pelo roteiro.

Pouco compreendido à época de seu lançamento, Cidade das Sombras pode ser considerada como uma pequena obra de arte à espera de reconhecimento (especialmente pelo público), pois referencia elementos diversos dispostos em tantas outras obras - tendo a pintura como um dos principais, até mesmo pela forma com que Proyas, Woslki e equipe de arte decuparam o filme - e ao mesmo tempo cria algo novo, especialmente no âmbito da reflexão. Como no início do texto, o filme é de difícil categorização, porém arriscaria alinhá-lo juntamente a Blade Runner e dispô-lo como uma ficção-científica noir, de forte apelo visual, mas conjuntamente dono de um forte conteúdo filosófico, onde temas como alienação, controle, manipulação e identidade (em sentido amplo), construção e desconstrução do pensamento (e por que não da mente), recorte entre  "cerebralização" e sensitividade,  além de questionamentos como "o que nos faz humanos?" e "estaríamos brincando de deus?" também estarem presentes na obra, explícita ou implicitamente.

Alex Proyas, em depoimento registrado num dos documentários contidos no material extra do filme, afirma que considera Cidade das Sombras como uma obra ainda incompleta. Tal afirmação poderia ser taxada de errônea, contudo a considero importantíssimo e até concorda com as palavras do cineasta, visto que as possíveis lacunas ou fragilidades identificadas à trama estariam livres para serem completadas ou mesmo interpretadas por cada espectador, tendo este a valiosa missão (possivelmente inconsciente) de formatar suas próprias soluções ou respostas aos enigmas não revelados pelo filme. Tido por muitos (especialmente a crítica especializada) como uma obra a frente do seu tempo (Matrix, lançado pouco mais de um ano após ela, que o diga), Cidade das Sombras pode não ser uma unanimidade ainda hoje, mas é um filme rico, inventivo e recheado de camadas, que independentemente de inspirações ou referências, conquistou seu lugar no rol dos grandes filmes autorais de ficção-científica.

Obs.: Tinha muito mais a comentar, mas não consegui traduzir em caracteres. Sendo assim, sugiro a todos que confiram o filme e ajudem a aumentar o espectro de interpretações comentando o post ao final da sessão.

AVALIAÇÃO
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