"Está consumado!" (Assertiva dita por Jesus Cristo, interpretado por Willem Dafoe).
À exceção do ritmo lento e de um certo excesso de subjetividade na construção narrativa do filme, que exige uma atenção redobrada do espectador, A Última Tentação de Cristo é um filme magistral, hipnotizante e corajoso, e ao contrário do que alguns preconcebem, talvez seja a mais crível das adaptações cinematográficas a retratar a figura/símbolo Jesus de Nazaré. Esta adaptação do romance do grego Nikos Kazantzakis (e não das passagens contidas na Bíblia, ponto que o filme deixa logo em seu início) é um projeto especial do diretor Martin Scorsese (A Invenção de Hugo Cabret), que vinha planejando realizar desde o início da década, vindo a lançá-lo apenas no final da mesma década, marcando também o retorno de sua parceria com o roteirista Paul Schrader (Gigolô Americano) - diretor e roteirista não trabalhavam juntos desde Touro Indomável - e com o ator Harvey Keitel (Taxi Driver), que aqui interpreta uma versão revisada - e menos odiável e odiada - de Judas Iscariotes.
Umas principais características adotadas pelo filme é a procura da humanização da figura mítica de Jesus, acrescentando "defeitos" humanos à sua personalidade, como dúvida, egoísmo, inveja e remorso, que o conferem certa fragilidade, tornando sua aceitação como o escolhido mais crível e menos fantasiosa. Outro ponto de destaque na construção do personagem se dá ainda no primeiro ato, quando Jesus (Willem Dafoe, de eXistenZ) é mostrado quase que como um ser esquizofrênico ao escutar as vozes que atribui a Deus e ver pessoas que ninguém mais ver, inclusive pessoas já mortas. Essa solução narrativa a meu ver traz uma sustentação bacana as parábolas altamente subjetivas da Bíblia, separando de vez a figura de Cristo da figura de Deus, colocando-o como um ser especial - o mesmo foi O escolhido, não é mesmo? - só que sem perder sua denotação, sendo homem homem e Deus Deus. Dafoe, apesar de não possuir aquela beleza europeia tão presente nos Cristos dos filmes bíblicos tradicionais, entrega aqui uma interpretação certeira, repleta de sutilezas, indo dos trejeitos de loucura - certamente você tomaria algumas das soluções defendidas por Jesus como atos de loucura, caso vivesse àquela época - à bondade incondicional, indo de um sorriso a outro. É uma pena que o ator não tenha sido lembrado em premiações por este papel, pois Dafoe, Scorsese e Schrader criaram talvez a "encarnação" mais própria e tangível de um Cristo palpável, reconhecível aos olhos humanos.
Ainda com relação ao conteúdo do filme, percebe-se que os realizadores optaram por focá-lo tão somente no olhar e na jornada de Jesus, deixando um pouco de lado o contexto político da época, pelo menos no que se refere a explicar e a mostrar os bastidores de Roma e Jerusalém, tanto que Pilatos (David Bowie, de O Grande Truque) aparece apenas em uma cena, justamente a de seu derradeiro "confronto" com Cristo. Isso não enfraquece a obra, visto que fica claro desde as primeiras cenas que o mote do longa é acompanhar a jornada de fé e dúvida do personagem, apresentando de forma explícita apenas o essencial. Tanto é que os próprios apóstolos, à exceção de Judas, que tem um papel primordial na estrutura narrativa do filme e na missão de Cristo, pouco aparecem e pouco falam, acabando por ser difícil até mesmo ligar nome a rosto, sendo esta possivelmente uma opção proposital de Scoresese e Schrader.
Apesar da marcante trilha sonora concebida pelo ex-Genesis Peter Gabriel (Asas da Liberdade) - totalmente calcada no que viria a ser categorizada como new wave -, que ressoa aos ouvidos de forma distinta e particular, da fotografia amarelada e hipnotizante do alemão Michael Ballhaus (Gangues de Nova York), da competente concepção de arte como um todo e da direção precisa que sabe dosar quase que perfeitamente os momentos de tensão e de delicadeza - apesar da já citada lentidão do filme -, o grande barato do filme recai na impregnação de simbolismos em todo o filme, construindo e reconstruindo elementos alicerçais das passagens bíblicas de forma implícita, como pode ser percebido nas cenas de tentação, privação e dúvida passadas por Cristo. Cada uma destas possui elementos à mais do que simplesmente a declamação do texto, sendo possível observar metáforas e inferências através da composição visual, da abordagem cênica, do plano de câmera, enfim, dos diversos recursos cinematográficos empregados a cada cena. Sendo assim, apesar do apuro individual de cada setor técnico do filme, o grande diferencial de A Última Tentação de Cristo em relação as demais produções a tratar sobre a mesma figura está na inferência simbólica do filme como um todo, que metaforiza mais do que explicita, tornando a experiência audiovisual do filme muito mais interessante. No entanto, somando o aspecto simbólico ao ritmo particular do filme, além de sua longa metragem (cerca de 160 minutos), o entendimento contexto da obra acaba um pouco prejudicado pois esta necessita de uma atenção redobrada, já que ela não é explicativa, pelo contrário, aposta muito na intuitividade, portanto para aqueles que não são iniciados na temática do filme - a religião - ou não estão totalmente focados na abstração do mesmo encontrarão certa dificuldade não só em acompanhar o desenrolar da trama, mas também em identificar e compreender tais simbolismos e inferências pontuadas ao longo do filme.
O ponto-chave (clímax) da obra e que talvez tenha sido o maior causador das comoções e polêmicas sobre o mesmo é apresentado de maneira orgânica e crível, justificando tanto tudo apresentado pelo filme até então, quanto o próprio título do mesmo, criando uma camada dramática, simbólica e reflexiva de alto nível, ao meu ver tornando a figura de Jesus Cristo mais próxima a nós e mais reconhecível como espelho da humanidade do que a das interpretações cinematográficas clássicas. É óbvio que, se interpretada de maneira literal o terceiro ato do filme pode agredir aquelas pessoas que possuem uma visão definido de como seria Jesus Cristo, entretanto como já dito diversas vezes, o caráter principal de A Última Tentação de Cristo é o simbólico, a metáfora em cima da metáfora, a aproximação do mito em homem e como não, ao alçá-lo a condição de mortal (em Terra), não confrontá-lo com os maiores desejos e medos sentidos e perpetuados pela própria humanidade? No meu ponto de vista, uma abordagem inspirada de Kazantzakis, Schrader, Scoresese e Dafoe, que não deveria ser generalizada como o filme que deturpa a importância e, em especial, a divinização de Cristo, mas sim como aquele que o torna mais próximo a nós (humanidade), que referencia com clareza e sobriedade uma das mais conhecidas passagens bíblicas - para grande parcela dos cristãos seria o norte de sua fé e da nossa existência - a dizer o seguinte "Criou Deus, pois, o homem à Sua imagem, à imagem de Deus o criou (Gênesis 1: 26-27)". Como visualizar um reflexo se não olhando a si mesmo? Eis então o maior trunfo e por conseguinte a maior mácula carregada pelo filme, que não traz meio termo, sendo por isso aplaudido de pé ou vaiado aos montes, infelizmente.
AVALIAÇÃO:
TRAILER:
Mais informações:
Bilheteria: Box Office Mojo
Filmes de MARTIN SCORSESE já comentados:
Filmes de MARTIN SCORSESE já comentados:
- Taxi Driver (1976)
- Touro Indomável (1980)
- Os Bons Companheiros (1990)
- Vivendo no Limite (1999)
- O Aviador (2004)
- A Invenção de Hugo Cabret (2011)
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